A Carta de Guia.
Sábado, 14 de outubro de 2017.
Como é um feriado prolongado abro espaço para contar historia do cotidiano forense, quando os profissionais do Direito para resolver as questões tinham que quebrar a cabeça. As faculdades não ensinavam prática forense e a tecnologia que existia era apenas a máquina de escrever e meia dúzia de livros técnicos. Sem telefone ou qualquer outro meio de comunicação o aprendizado era conseguido em conta-gotas, cada caso uma novidade que correspondia uma nova solução.
Todos eram autodidatas. Tempos em que o Mestrado e o Doutorado existiam apenas na Europa e impossível para o bolso de Juízes e Promotores de Justiça. Os professores Catedráticos ou titulares de Cadeiras nas Universidades eram apenas estudiosos e exímios profissionais de suas respectivas áreas. Mas todos eles tinham consciência e preparo da arte de ensinar.
E mesmo assim o dia a dia dos novos bacharéis era um suplício. Tudo era difícil. O episódio que vou contar aconteceu no fórum da comarca da Lapa, em um primeiro encontro entre dois novatos: um Juiz substituto e um Promotor Substituto. Este último era eu, com um ano há mais na carreira, que estava voltando para a Lapa depois de ter exercido por cerca de sete meses a Promotoria da comarca de Ipiranga. Só não vou dizer o nome do Juiz iniciante porque ele até hoje jura, de pés juntos, que não se lembra do ocorrido.
Mas posso dizer que foi verdade e não fruto da minha imaginação. Mal acomodei minha mala na pensão onde morava e fui a pé para o fórum, apenas atravessei a rua, pois eu me instalara em um quarto da casa da família do Sr. Odorico Prestes, localizada na esquina do fórum. A propriedade de construção centenária era enorme, além de abrigar a Coletoria de Rendas, tinham alguns quartos que ele alugava para conhecidos e outros cômodos eram ocupados pelos familiares. A esposa, d. Leocádia, preparava as refeições dos hóspedes.
Era um casal maravilhoso e inesquecível. Eu consegui um quarto porque eles conheciam meus pais e meus avós lapianos. Quando pisei na entrada do fórum vi no topo da escada de madeira que levava ao piso superior, um jovem de terno e gravata e logo deduzi que era o novo Juiz Substituto. Era período de férias forense e os titulares da comarca estavam ausentes da cidade. Cabia aos substitutos dar andamento normal aos serviços forenses.
Ele quando me viu também vestido de terno e gravata, gritou:
- Você deve ser o Promotor Substituto, não?
Concordei com um aceno de cabeça.
- Por favor, suba, por favor!
A voz era de quem estava em apuros e após cumprimentar alguns funcionários do andar térreo do prédio, subi ao gabinete do Juiz. Sem delongas ele me disse:
- Amigo, estou numa enrascada há dois dias! Tenho um processo criminal urgente e não sei o que fazer. Preciso que você me ajude...
- Ok! Vou ver se posso ser útil. O que é?
- Preciso escrever uma Carta de Guia?
Sorri. O Juiz me encarou e deu um sorriso amarelo. Eu aproveitei do momento e disse:
- Pegue papel, uma caneta e escreva: “Ilustre Diretor: Para satisfação minha, tenho a honra de lhe encaminhar o preso de nome Fulano, para morar um tempo na sua penitenciária. Cordiais saudações”.
Ele notou que o riso não saia da minha boca e meio desconfiado arrematou:
- Você está me gozando!
E juntos demos risada. Aquele encontro serviu para selar uma amizade imorredoura. Ele é um amigo que guardo no meu coração. Para que o leitor leigo possa entender, a “Carta de Guia” nada mais é do que um ofício impresso, assinado pelo Juiz, para “apresentar” o réu condenado ao Coordenador do Sistema Penitenciário. É mero expediente burocrático preenchido no cartório criminal. Nada mais. Mas para um Juiz novato a tal “Carta” era bicho de sete cabeças. Era assim que se aprendia na longa e interminável escola da vida...
“Dar os primeiros passos em uma profissão não é nada fácil. Imagine estar em uma cidade do interior há mais de quarenta anos atrás, sem nenhuma comunicação. Cada dia era um novo e difícil aprendizado!”
Edson Vidal Pinto