Aconteceu Dentro do Bonde.
Como era bom quando as famílias se reuniam nos finais de semana na casa dos avós ou da irmã mais velha, porque todos participavam dos momentos de todos e ninguém podia esconder absolutamente nada.
Segredo entre filhos, irmãos, cunhadas ou primas era artigo de luxo, pois embora não existisse comunicação eletrônica as línguas eram ferinas e não perdoavam. Não importava que envolvesse alguém do núcleo familiar, mas o bom mesmo era quando o assunto escandaloso ou picante era de família alheia.
As conversas eram intermináveis e os assuntos mudavam como passe de mágica. E tinha muita coisa para falar e só as crianças as vezes ouviam alguma coisa, pois tinham muito que brincar.
Meu saudoso, pai nascido em Antonina, era filho único e minha avó paterna por infelicidade faleceu no parto. Meu avô que era da marinha mercante voltou para o mar e meu pai foi criado por um padrinho, na cidade de Mafra - SC. Quando meu pai tinha treze anos de idade o meu avô desembarcou em Antonina, casou e não teve filhos. Minha convivência com ele foi esporádica; porém tivemos um vínculo imorredouro, pois até hoje me lembro de seu carinho para comigo.
E não o esqueço de e sonho com ele. Já do lado materno tenho poucas lembranças de meus avós, ambos nascidos na cidade da Lapa, pois vovô faleceu quando eu tinha quatro anos de idade e vovó por ser muito introvertida, ficava muito pouco em tempo na casa de meus pais, pois morava de tempos em tempos nas casas das outras filhas.
Era o preço da viuvez da época. Ela pouco falava e vivia para seus crochês. Com a assunção do Getúlio no governo meu avô de ala política contrária mudou da Lapa para Curitiba trazendo toda a família, mulher e sete filhos. As poucas vezes que me lembro de meu avô era quando ele chegava à casa de seu genro, meu saudoso tio Emílio Merlin, portando na cinta um revólver 38.
Ele era Delegado de Policia do bairro do Portão e segundo comentários era um homem destemido, temido e muito respeitado no bairro. É dele que eu gravei na memória uma história que a família contava nesses encontros de finais de semana, quando então já falecido há alguns anos, minhas tias e tios lembravam alguns de seus episódios.
Ele se chamava Antônio Rodrigues Stinglin e apesar de sua vivência política sempre contrária aos governantes, era um homem de poucas palavras. As pessoas para conversarem com ele mediam bem o que diziam, pois temiam a sua reação.
E a história que ouvi e que agora transcrevo foi a seguinte: a Chefatura de Policia estava localizada nas imediações da Praça do Portão, próximo da Igreja católica daquele bairro; e vovô morava na rua Santa Catarina, que terminava na Avenida República Argentina. E para ir de casa ao trabalho e vice-versa usava o bonde como meio de transporte.
No final de certo dia, após encerrar o expediente de trabalho, ele “pegou” o bonde para ir para casa quando foi abordado por um amigo que lhe perguntou:
- Seo Antônio quero lhe fazer um convite, posso?
Meu avô aquiesceu com um pequeno gesto de cabeça.
- O senhor precisa visitar a minha igreja, para receber a palavra de Jesus Salvador. Aceita o convite?
Dizem que meu avô fechou a cara para o homem e respondeu em voz alta:
- Ah, que dizer que para frequentar sua igreja a pessoa necessita de convite, não é mesmo?
O homem surpreso com a resposta e sabendo do temperamento do meu avô ficou vermelho e mudo. Meu avô então arrematou:
- Engraçado, meu caro. Na minha igreja não é assim, pois nela o Padre toca o sino e quem quer vai e quem não quer não vai. Passe muito bem!
E em seguida desceu do bonde. Daí em diante o homem quando encontrava meu avô apenas o cumprimentava com um aceno de cabeça, nada mais. E hoje? As famílias estão desaparecendo, os encontros são esporádicos e ninguém sabe mais nada de ninguém. Nada de bom; só de ruim...
“As famílias estão tão destroçadas com o casa e descasa, que as distâncias entre seus membros estão cada vez mais acentuadas. Filhos longe dos pais, irmãos de irmãos e primos então estão cada vez mais estranhos. Para onde será que caminha a humanidade?”