Ainda bem que é domingo!
Nem bem terminou a semana a maior expectativa é esperar a chegada do domingo, pois ficar de quarentena compulsória sem sair um só dia de casa, torna o dia esperado o mais prazeroso de todos:
- Então vai sair? Vai desobedecer a “reclusão social”? - perguntou a minha voz da consciência.
- Jamais! - respondi de pronto para mim mesmo.
- Vai o fazer o quê?
- Tudo o que não fiz a semana inteira ...
- ?
- Na parte da manhã, depois de tomar meu café, vou assistir TV no telão da sala ...
- Ué, você não viu TV a semana toda?
- Vi, só que vou ver os programas da Rede Globo, entendeu?
- Ah, entendi. E depois do almoço?
- Vou assistir TV no meu escritório ...
- Tá, vai só mudar de lugar!
- E assistir um filme inédito:
“A Noviça Rebelde”.
- Pô, esse filme passa todos os dias ...
- Mas nunca nos domingos.
- Verdade. Mas vai passar a tarde toda nisso?
- Não! No final da tarde vou ler um ótimo livro.
- Novamente? Mas você lê diariamente ...
- Leio, só que este livro é um que nunca li. Logo será novidade para sair da mesmice.
- E a noite? O que você vai fazer de novo?
- Um bolo.
- Você?! Logo você que não sabe nem ferver um litro de leite, muito menos fazer um ovo no espeto ou uma salada de tomate?
- Pois é, sempre tem uma primeira vez, não é mesmo?
- Tudo isso para sair da paúra da quarentena e fazer um domingo diferente?
- É como eu disse: o domingo é um dia diferente dos outros, mágico, cheio de surpresas e de ócio. Mas como estou farto do ócio resolvi aproveitar preenchendo o tempo com coisas inusitadas. E fazer um bolo é o ápice da minha criatividade ...
- E você tem receita?
- Precisa?
- Putz, com certeza não vai dar certo. Desista!
- Não ...
- Então por quê você não faz uma gemada que é mais simples?
- Não sei, acho que não tenho todos os ingredientes.
- Não tem ovos e nem açúcar?
- Ovos? Para quê ovos?
- Para a gemada, seu burro!
- Ops, ofender não!
- Desculpe-me, me excedi. Prometo que não darei mais palpite. Lavo as mãos, faça o que quiser! Vou só ficar olhando.
- Acho melhor mesmo, caso contrário vamos acabar brigando.
Fiquei aborrecido com a petulância de minha consciência e com sua desconfiança na minha capacidade de enfrentar a cozinha. É bem verdade que não sou nem um pouco chegado na arte culinária, tenho grandes dificuldades, mas agora não quero assinar o meu atestado de “inapto”. Mas um bolo é mesmo difícil de fazer, para quem não fez única fez um mísero sagu. Só não quero dar o braço a torcer para minha consciência e vou ter que fazer alguma coisa.
- Ah, já sei o que fazer a noite: vou preparar uma deliciosa peixada com molho especial - falei em voz alta para ser ouvido.
- Duvido. - Foi a única palavra que minha consciência não pode segurar. - Vou ficar assistindo de camarote para ver no que vai dar! - completou meu debochado ego.
E cumprida nos períodos da manhã e da tarde tudo que havia previsto para este dia especial. E quando chegou à noite para criar um cenário de expectativa comecei abrir as portas dos armários da cozinha, uma por uma, para achar o que eu precisava.
- Voilá! Enfim achei!!
E com atitude altiva tirei uma lata de sardinhas do armário, abri a mesma com todo o cuidado, despejei seu conteúdo no prato com todo o seu azeite, depois peguei um pedaço de pão e me deliciei de comer a peixada feita. Minha consciência do seu camarote ficou muda e calada. E assim vou terminar meu domingo de interminável quarentena; mas com certeza bem diferente dos outros dias da semana...
“Viver enclausurado exige permanente criatividade. No domingo faço tudo o que deixei de fazer nos outros dias da semana, só para fugir da monotonia. Mesmo que minha própria consciência tente prejudicar meus planos.”
Edson Vidal Pinto
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