Alvará Temporário
Ontem à tarde por imperiosa necessidade tive que levar meu carro na Toyota Sulpar para fazer uma revisão de cortesia. E todos os grilhões que prendiam um dos meus pés em uma bola de ferro foram retirados, para que eu pudesse dirigir, temi se ainda teria condições de ligar e manobrar meu veículo depois de longa a tenebrosa quarentena dentro de casa. Quando a porta da frente de meu apartamento abriu eu parecia um tigre saindo da jaula, com medo de tudo e de todos, receoso de enfrentar a selva de pedras, asfaltos e de humanos desconfiados.
Sentei no carro e tamanha era a emoção que fiquei sem saber como ele funciona pois não precisa de chave, pensei firme: “Ligue! Ligue!”. Mas nada aconteceu, só depois caí em mim que basta colocar o pé no freio e acionar o botão do arranque. Pronto, o motor funcionou. Consegui sair da garagem quase raspando o carro nas colunas, mas heroicamente cheguei a rua.
Foi quando senti pavor e quase dei meia volta para retornar porque me assustei com o bando de pessoas com máscaras andando nas calçadas, dirigido veículos, levando cachorro fazer xixi e cocô, e outros sem se importarem consigo e com os outros passeando com o nariz livre, leve e solto. Ou não têm amor a vida ou são agentes secretos da China, por possuírem antídoto para o coronavírus. Bem que o novo diretor da PF poderia investigar essa possibilidade e começar mostrando serviço.
Mas como não poderia recuar de missa missão, continuei meu trajeto e sempre procurando driblar o maldito vírus. E aos poucos fui percebendo que o nosso mundo não é mais o mesmo, as pessoas estão menos apressadas, até a velocidade dos veículos diminuiu, e paira no ar uma nuvem invisível de medo e solidariedade. Muitos andarilhos, paupérrimos, vagando sem destino e outros esticados sobre os trapos colocados nas calçadas. Tem uns trechos da rua Padre Anchieta no Bigorrilho do Champagnat, que eles fizeram do espaço existente sob as marquises de muitos prédios, seus guetos impenetráveis em que nem a assistência social da Prefeitura consegue removê-los. São os legítimos personagens do assistencialismo e exploradores da bondade alheia.
Entendo que aqueles que não se ajudam e não querem se ajudar não podem ser tolerados e nem considerados excluídos, pois estes são os que suam para ter o pão de cada dia e ficam à margem do agasalho do Estado. As pessoas que vi são ociosas e fonte de doenças. E o Ministério Público não permite que eles sejam molestados e nem retirados do lugar em que estão. Tenho sérias dúvidas se esta é a melhor solução para o problema. Vi uma moça muito bonita dirigindo um carro esporte, com as janelas abertas, sem máscara e com pulseira de ouro em um dos braços, estava só preocupada com o cabelo que caia sobre o seu rosto. Meu Deus, quanta negligência!
Sem se previnir contra a mamona assassina, frutinha preferida da Maria Louca, e uma vítima em potencial para um ladrãozinho de motocicleta ou da esquina de um semáforo. Para esta moça a pandemia é algo que não consta do seu dicionário. Também enxerguei um menininho chutando bola no jardim da sua casa, com uma máscara no rosto, esbaforido por quase não poder respirar, mas alegre e absorto na inocência de seu pequeno mundo. E antes de chegar na Sulpar lá no Alto da VX, deparei com um casal de namorados fazendo footing na Avenida Nossa Senhora Aparecida, cada qual com sua máscara no rosto, de mãos dadas e com certeza vivenciando seus sonhos.
Na Sulpar todos os funcionários rigorosamente cumprindo as regras de prevenção e o lugar preparado com zelo para evitar as aproximações de pessoas dentro do estabelecimento. Com a missão cumprida, voltei para a santa e adorada prisão do meu lar. Estacionei meu carro quando meu “Alvará Temporário” estava vencendo. E gostei muito: pois quando entrei em casa deparei com o sorriso de alegria estampado no rosto de minha namorada...
“Dizem que depois do Covid 19 o mundo será diferente. Será mesmo? Não haverá mais guerras, fome, crimes violentos, nem ódios étnicos, nem inveja, nem crianças à míngua? Será que os seres humanos estão aprendendo a lição que motivou nosso medo e amor pela liberdade? Ou continuaremos nos importando até onde alcança a imagem dos nossos olhos? Eis uma questão para reflexão.”
Edson Vidal Pinto
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