Corpus Christi
Dos quarenta e sete anos de minha vida profissional prestada exclusivamente à Justiça do meu estado, com certeza bem mais da metade eu atuei na área criminal. Como Promotor de Justiça sempre estive na trincheira combatendo o bom combate contra a criminalidade. Também coordenei a Promotoria Especializada de Crimes Contra a Administração Pública. Nunca me ufanei, porém nunca me arrependi. Jamais encarei qualquer caso de forma passional, pessoal ou excedi os limites de acusador. Como parte no processo criminal procurei me agasalhar sempre nos limites da prudência e do justo, sem jamais olvidar de minhas atribuições de agente do Parquet Das milhares de denúncias que ofereci e inquéritos policiais em que atuei, não foram poucos Habeas Corpus que orbitaram ao meu redor.
Na época, tanto no Tribunal de Justiça como no Tribunal de Alçada, referidas Cortes eram instadas a proferir seus julgamentos e não lembro de ter lido qualquer decisão que extrapolasse os limites do "remédio heroico" (velha expressão usada para se referir ao Habeas Corpus). Tecnicamente possível o trancamento da ação penal em decorrência de flagrante constrangimento pela ausência de configuração da descrição do fato tido como criminoso ou por notório cerceamento de defesa.
Tudo rigorosamente nos limites deste instituto que inclusive é assegurado constitucionalmente. Não recordo nenhum caso em que a concessão da ordem de Habeas Corpus tivesse ultrapassado os limites da análise do direito de ir e vir e suas decorrências, como as que me referi. Na arte de julgar é imperativo processual penal que o Juiz preste sua jurisdição nos limites estanques de cada pedido, ou seja, no caso do Habeas Corpus não lhe cabe adentrar no mérito do tipo penal do processo ou do fato apurado no inquérito em trâmite. Pela idade que tenho e bagagem que angariei na atividade forense, achei que tinha visto de tudo. Os erros foram muitos, inclusive eu próprio cometi, todos inconscientemente. Mas, nunca ouvi ou li erro processual tão estranho quanto o que cometeu a nossa Suprema Corte, ao apreciar pedido de Habeas Corpus impetrado em favor de "médicos aborteiros" e funcionários de uma clínica clandestina do Rio de Janeiro, cujo julgamento, por maioria, não só foi concedida a ordem para revogar o decreto de prisão preventiva como, ainda, legislaram para descriminalizar o crime de aborto se realizado nos três primeiros meses de gestação, decisão esta restrita às atuações dos funcionários da clínica.
Decisão que mutilou toda regra processual penal e abriu brechas de consequências inimagináveis. Parece que estamos vivendo num país mágico onde tudo acontece ao sabor da imaginação e da vontade dos que mandam. Não existe regras e nem freios, tudo é possível para satisfazer o ego de cada um. Não é a toa que em um concurso público o examinador, na prova oral, perguntou ao candidato: qual a diferença entre Habeas Corpus e Corpus Christi? E o candidato pego de surpresa, respondeu encabulado:
- Não sei! Acho que perdi esta aula !
No julgamento em comento, somos nós que perguntamos aos " doutos":
- Céus, este julgamento foi ensinado em qual aula ? Tenho certeza que assisti todas elas e ninguém falou que o Juiz pode revogar tipo penal em vigência, para beneficiar pacientes de Habeas Corpus. Ou estou com amnésia?