Livro de Registros
Quando o Ministério Publico zelava pelo interesse publico lhe incumbia fiscalizar a aplicação das leis e estar presente em todos os lugares onde pudesse haver abusos à dignidade da pessoa humana. E um destes lugares eram as delegacias de polícia que pelas condições precárias da carceragem e excesso de presos obrigavam os Promotores de Justiça a procederem regulares visitas a fim de constar excessos ou irregularidades e tomar as medidas legais cabíveis.
Estas consistiam desde a requisição de inquérito policial para apurar responsabilidades dos agentes públicos responsáveis pela carceragem e oficiar ao Secretário de Justiça e ao Juiz das Execuções Penais relatando e solicitando providências que o fato apurado exigia. Toda delegacia tinha um “Livro de Registro” em que o Promotor datava o dia da “visita” e anotava o nome, a quantidade de presos, motivo da prisão e eventuais irregularidades. E quando o Corregedor do MP fazia correição na Promotoria conferia na delegacia de polícia o livro referido para saber quantas vezes o Promotor fiscalizara a repartição e o que anotou nos seus registros. Era o fiscal fiscalizando o fiscal.
E se não existissem anotações o Promotor era advertido e ficava passível de responder por infração funcional. Quando Promotor nunca me descuidei destas atribuições. Lembro que nos idos de 1.969 como Promotor Substituto da comarca da Lapa fui designado pelo então Procurador-geral de Justiça Prof. Ary Florêncio Guimarães para atender a Promotoria da comarca de Ipiranga, localizada nas proximidades de Ponta Grossa, uma pequena cidade com poucas casas, ruas de muita lama e pó, serrarias e quase deserta. Um lugarejo para bem definir o porte do local.
O fórum era de parede e meia com a casa do Juiz Rui Fernando de Oliveira e sua família, eu me alojei no início na única pensão de nome “Sant’Ana” cuja construção era de madeira, até que uma noite houve um tiroteio dentro dela entre algumas pessoas que jogavam bilhar e um dos projéteis atravessou uma das paredes do quarto em que dormia. Daí por sugestão do dr. Rui fui morar no gabinete do Promotor no fórum, tendo o Prefeito providenciado um sofá-cama e arrumado a parte elétrica do chuveiro para que eu pudesse tomar banho.
Minhas refeições eu continuava fazendo na pensão porque era o único local que atendia o Publico em geral. Ipiranga era uma localidade calma e de tranquilidade irritante para o pouco serviço forense. E com tempo de sobra resolvi numa certa tarde visitar a delegacia de polícia para cumprir uma de minhas atribuições. Não tinha carro e fui a pé, de terno e gravata, enfrentando o pó quando passava um caminhão carregado de toras de madeiras.
Quando cheguei na repartição policial me deparei com um senhor sentado em uma cadeira na frente do imóvel, bem vestido, rosto bem barbeado, que educadamente me perguntou:
- O senhor deseja alguma coisa ?
- Sim, eu sou o Promotor e quero fazer uma inspeção na delegacia …
- Pois não, doutor, o senhor pode entrar.
Entrei e logo senti no ar um cheiro de limpeza que nunca tinha constatado em qualquer outra delegacia, fiquei surpreso.
- Eu quero percorrer a carceragem …
- O senhor me siga, por favor.
Tinham apenas duas celas e nenhum preso. Tudo muito limpo e asseado. Era uma repartição exemplar.
- O senhor toma chimarrão ? - perguntou o homem.
- Não, obrigado. - respondi.
- Então aceita um cafezinho ? - insistiu o anfitrião.
- Também não, obrigado. Eu gostaria que me apresentasse o “Livro de Registro” de visitas do MP …
- Livro … livro … não sei que livro é esse, não senhor.
- Como ?! O senhor não sabe, o Promotor titular da comarca nunca inspecionou a delegacia?
- Desde que estou aqui ele nunca compareceu.
- E o senhor é delegado de Ipiranga há quanto tempo ?
- Eu não sou o delegado…
- E quem é o senhor ?
- O preso …
- Como ? - perguntei surpreso.
- Eu sou o único preso e sou de confiança, sou eu que limpo tudo, lavo e cozinho .
- E o delegado ? - quis saber.
- Ele, o sargento e um soldado foram pescar lá no Rio Ivaí …
Claro que ri por dentro.
- E o senhor, por quê está preso ?
- Homicídio, matei três safados num bailão bem no interior do município.
Saí da delegacia, antes cumprimentei o preso por cuidar tão bem do local, não assinei o livro e voltei para o fórum. No dia seguinte o delegado chamado de “calça curta” porque não era de carreira e fora nomeado politicamente para exercer o cargo, compareceu no meu gabinete no fórum, todo ressabiado, com o “Livro de Registros” que entregou para que eu relatasse a inspeção feita.
Descrevi o episódio com fidelidade, inclusive que a delegacia estava sob a responsabilidade de um preso e que o delegado tinha ido pescar com os policiais militares do destacamento. Soube que no dia seguinte o delegado pediu exoneração do cargo e uma semana depois outro cidadão da comunidade foi nomeado em seu lugar. Nunca esqueci deste episódio e que por lembrar registro nesta crônica como uma cena inusitada dos bons tempos em que trabalha no interior do estado…
“Aprendi a respeitar a lei e como fiscal dela nunca transigi. Era um Ministério Publico diferente de hoje, pois não tinha a estrutura física e humana da atualidade, mas cumpria muito bem as atribuições legais.”
Édson Vidal Pinto