Maldade
Por Edson Vidal
A maldade do ser humano não tem limites. Como promotor de Justiça, com atribuições no campo penal, tive em minhas mãos milhares de inquéritos policiais, todos eles noticiando fatos do cotidiano das pequenas e grandes cidades. E cada um deles narrando acontecimentos de maior ou menor repercussão.
Para o promotor calejado os episódios não eram avaliados em grau de importância, pois sempre alguém era vítima e esta almeja justiça. Mas alguns crimes carregados de ódio e absurda sordidez ficam impregnados em nossa lembrança.
A história que vou contar parece inacreditável para ser verdadeira, aconteceu lá pelos idos de 1977 e seu registro está arquivado em uma das Varas Criminais da Comarca de Umuarama.
Era um inquérito contendo detalhes de um fato aparentemente corriqueiro: um acidente de trânsito. Um taxista da cidade com planos de mudar residência para Rondônia, na época uma região de muitas oportunidades, juntamente com sua esposa, foi levar um filho menor para ficar na casa da avó materna, localizada no distrito de Perobal. Apenas o casal viajaria a Rondônia.
No retorno de ambos para Umuarama estava chovendo. O veículo táxi era um Ford, modelo Corcel, quatro portas, e na rodovia recém-asfaltada (trecho então não concluído inteiramente ligando Umuarama a Guaíra), a roda dianteira do lado em que estava sentada a mulher bateu violentamente em um buraco da pista e com o choque a porta abriu e a passageira foi arremessada para fora, caindo com a cabeça sob o rodado traseiro do carro, tendo morte instantânea.
Li aquela peça policial cujo laudo pericial realizado na porta que abriu concluiu que a maçaneta estava estragada pela falta de cuidado do dono do veículo. Tratava-se de homicídio culposo decorrente da negligência do taxista por não ter consertado a porta.
Coloquei o papel na máquina de escrever e prontamente datilografei a denúncia para dar início à ação penal e apurar a responsabilidade do marido. A denúncia foi recebida pelo juiz e a ação foi instaurada.
Passado mais ou menos um mês, um pequeno avião desceu no aeroporto de Umuarama, trazendo algumas pessoas de uma grande e conceituada companhia de seguros. Foram ao meu gabinete no fórum porque queriam me contar alguns fatos que não estavam nos autos do referido processo. Dentre as pessoas estava o jornalista Saulo Gomes (do programa Flávio Cavalcanti da TV Tupi), um advogado, um engenheiro criminal e um diretor da seguradora, todos de São Paulo.
Tomei conhecimento da existência de seguro de vida firmado individualmente pelo taxista e sua mulher, com valores do prêmio desproporcionais, sendo o valor pago por eventual morte do varão para a esposa infinitamente menor se ocorresse o contrário. Circunstância que despertou a atenção da seguradora.
Na ocasião recebi um laudo pericial (rico em detalhes e fotografias em preto e branco e coloridas) do "buraco" causador do acidente, bem como, da impossibilidade pela Lei da Física, da passageira cair com a cabeça sob a roda traseira do carro. O buraco não teria profundidade para gerar um impacto e fazer abrir a porta por inteiro. O jornalista exibiu gravações de depoimentos de familiares da vítima dando conta que o casal vivia de mal a pior.
No dia seguinte aditei a minha denúncia originária de homicídio culposo para homicídio qualificado e pedi a prisão preventiva do réu. Decretada a prisão, o taxista evadiu-se de Umuarama. Neste período, o fugitivo ficou com a ideia fixa de que seus irmãos teriam recebido o prêmio do seguro e passou a ameaçá-los. Eram ao todo seis irmãos, dois homens (em que recaía o recebimento do seguro) e quatro mulheres.
Cerca de um ano depois do decreto de prisão, um dos irmãos jurado de morte pelo taxista marcou a data de seu casamento. No dia das bodas, o irmão foragido compareceu ao evento, todo dissimulado e dizendo que não poderia faltar, sendo prontamente acolhido pela família. No almoço realizado na casa de uma das irmãs, quando estavam sentados ao redor da mesa, o taxista levantou a voz e disse que estava ali para matar os "traidores". O noivo levantou e tentou sair quando recebeu um tiro na nuca, caindo morto. O outro se levantou e saiu correndo tendo recebido um tiro que se alojou na espinha, ficando tetraplégico. Só então o acusado deixou o lugar, sob os gritos de perplexidade de seus outros familiares.
Não consegui fazer o júri porque fui, tempos depois, promovido da Comarca de Umuarama para Curitiba. Apenas fiquei sabendo que o taxista acabou preso e condenado. Nada mais. Porém, a história nunca mais caiu no meu esquecimento. Típica tragédia do palco da vida! São estas as lembranças que carrega o promotor de Justiça na sua bagagem profissional. Circunstância que passa despercebida pela sociedade a qual tem o dever de servir!