No Tempo da Diligência
Contando ninguém acredita, principalmente a nova geração que desconhece as dificuldades enfrentadas pelos nossos antepassados quando viajavam pelas estradas e cidades do interior do estado, plantando o progresso e alicerçando o futuro.
Nesta crônica vou contar uma verdadeira aventura acontecida nos anos quarenta ou cinquenta do século passado, protagonizado por uma figura ilustre do cenário jurídico e cujo rastro deixou saudades -, pessoa esta que tive o especial privilégio de conviver e privar de sua amizade.
Conheci o dr. João Cid de Macedo Portugal quando cursava o segundo ano da Faculdade de Direito da PUC, onde ele lecionava Direito Penal. Na época nunca poderia imaginar que após ter concluído o curso e ter ingressado na carreira do Ministério Público pudesse ter como colega o estimado professor, ele Procurador de Justiça e eu Promotor Substituto.
E o mais interessante é que nossas vidas se cruzaram porque no período do curso acadêmico eu era funcionário publico lotado na Consultoria-Geral do Estado (hoje Procuradoria -Geral do Estado) e assessorava o seu irmão dr. Clotário de Macedo Portugal Filho, Chefe da Procuradoria Jurídica do Patrimônio do Estado. Este foi uma luz no meu caminho e meu padrinho de casamento.
Tanto o dr. Clotário como o dr. João Cid eram filhos do des. Clotário de Macedo Portugal, ex-Presidente do Tribunal de Justiça e uma legenda na história do Poder Judiciário Paranaense. Foi em uma das aulas que o Prof. João Cid resolveu contar uma passagem de sua vida profissional na época em que dava seus primeiros passos no MP, então como Promotor de Justiça da Comarca de Cerro Azul. Ele disse que no tempo da faculdade ele e seu irmão na hora das refeições eram sabatinados pelo pai, que também aproveitava para ensinar alguns temas de Direito.
E nestas ocasiões o pai orientava que se algum de seus dois filhos resolvessem fazer carreira jurídica na Magistratura ou no Ministério Público, quando deparassem num processo com alguma dificuldade que nunca procurassem orientação de qualquer cartorário mais experiente do fórum para não perder a autoridade na comarca.
O dr. João Cid no término do curso optou por ingressar no MP e seu irmão dr. Clotário escolheu o exercício da Advocacia. O dr. João Cid foi então nomeado para a comarca de Cerro Azul, cuja cidade está localizada há 87 quilômetros da capital, percurso de tempo que hoje em dia é percorrido em 2 horas. Porém na época a distância equivalia a uma viagem de um dia inteiro, saindo de manhã bem cedo de Curitiba para chegar no cair da noite em Cerro Azul. E o transporte ? Era uma diligência puxada por dois cavalos que no caminho eram trocados por outros dois até chegar no final da viagem. O Prof. João Cid contou que levou uma mala de roupas e uma outra de livros, além de cópias de atos que poderiam ser usados nos processos. Foi uma viagem difícil e cansativa e quando chegou na pensão que serviria como sua residência, apenas beliscou um prato de comida e foi dormir. No dia seguinte de manhã foi ao fórum e como fazia tempo que a comarca não tinha um Promotor recebeu umas vinte e poucas “habilitações de casamentos” para apreciar e despachar. Foi quando pensou no seu pai : ele tinha lhe ensinado tudo menos sobre esses autos de “habilitação de casamento” pois não sabia para que servia e nem o que teria de fazer nos mesmos. Quebrou a cabeça o dia inteiro e continuou sem resposta. Lembrou do conselho que recebeu e não procurou nenhuma orientação de ninguém, nem do Juiz. No dia seguinte embarcou na diligência com os autos de “Habilitação de Casamento” embaixo do braço e veio para Curitiba consultar seu pai. A noite, na casa paterna, mostrou os “processos” ao pai e este caiu numa gostosa gargalhada. D
epois então disse ao filho:
- João Cid : os “processos” em questão são autos de cunho administrativo em que os noivos pedem ao Juiz para casar no civil, em que ambos declaram que estão de pleno e juntam as respetivas certidões de nascimento . O Juiz recebe e manda autuar o procedimento para em seguida dar “vista” ao Promotor que deverá examinar a documentação e dizer se existe ou não impedimento legal para a realização do casamento…
- Ah, os Impedimentos que estão previstos no Código Civil ? - falou o filho.
- Estes mesmos : os chamados impedimentos “dirimentes” e “impedientes” ( casados não podem casar; viúvo que não fez inventário da esposa não pode casar; filha não pode casar com o pai ; maiores de 70 anos o casamento tem que ser feito com separação total de bens, etc, etc, etc.)…
- E se não houve nenhum óbice para o casamento o que o Promotor escreve no seu despacho ?
- Nada há opor !!!
- Só isto ? - perguntou o filho.
- Só isto! - respondeu o pai.
E no dia seguinte, bem cedinho o novato Promotor de Justica estava novamente sentado na diligência rumando de volta para sua comarca. Claro: entre solavancos, trancos e muito chão para percorrer. Afinal para chegar em algumas cidades só a diligência conseguia, pois os tempos eram outros e onde só os fortes tinham amor às Carreiras para enfrentar tantas dificuldades …
“Cada vida humana com sua própria história. Lutar para alcançar um lugar ao sol não é tarefa fácil para ninguém. Vale lembrar que do céu só cai chuva, granizo e neve.”
Édson Vidal Pinto