O terceiro risco
Pois é, sempre tem uma primeira vez. É por isso que não se pode dizer que “desta água não beberei!” Por quê? Estou em “prisão domiciliar” ou melhor em uma doce “prisão domiciliar”, pois é o terceiro dia seguido que não saio de casa por causa do coronavírus. Não, não estou infectado, graças a Deus! São meus pulmões combalidos pela idade que me permitem espirar o ar, mas impedem sua total expiração, daí, o ar que fica retido dificulta meu fôlego e me dá falta de ar. Por quê eu fumei? Não, se tivesse fumado teria uma explicação mais fácil para justificar minha deficiência pulmonar. Há muitos anos estou sendo vigiado e tratado pelo melhor pneumologista de Curitiba, meu amigo Rodney Freire.
E com a chegada do “bichinho” chinês a sua recomendação é que eu não saia de casa, por motivos óbvios. Foi o que bastou para minha mulher confiscar as chaves das portas da frente e dos fundos de casa, para eu não poder sair. E não adiantou argumentar e nem recorrer porque ela julgou e desproveu meu recurso. Minha esperança é impetrar um habeas corpus para o Gilmar, que só agora se tornou meu ídolo. Enquanto aguardo estou na clausura fazendo retiro forçado e penitência.
Só não acreditem neste desespero de estar em uma masmorra, com uma bola de ferro amarrada em um dos meus pés, porque eu adoro ficar em casa ao lado de minha mulher. É que tenho de ser melodramático para dar um pouco de molho nesta crônica. Pois, bem. Estou escrevendo um diário para registrar tudo que faço, vi e ouvi no espaço da minha confortável cela; estou me sentindo o verdadeiro “molusco” quando inocente foi confinado em uma sala de repartição policial por ordem judicial.
Só não posso tomar umas e outras por causa da medicação, nem receber o Boff, a Amante e a raia miúda interligada ideologicamente, porque nunca fui político e nem presidente do país. Também não recebi recadinho do Francisco e e nem livrinho de catecismo.
E do Maria Louca quero distância embora ele resida perto demais para o meu gosto -, pois ambos somos “bariguenses”. Explicações necessárias para poder folhear meu diário. Primeiro dia: acordei já pensando que não vai ter futebol pela TV, salvo as reprises de jogos e comentários insossos de ex-futebolistas e pessoas que não acrescentam nada de novo.
Abri o WhatsApp e deparei com mil comentários, piadas e ilustrações sobre o coronavírus. Desliguei rápido para não ficar psico. Fiz exercício pulmonar. Li.
Almocei. Vi um filme na Netflix. Voltei a ler. Jantei. Outro exercício pulmonar.
Assisti TV. Dormi.
Segundo dia: acordei depois de um pesadelo daqueles. Minha sogra tinha vindo me visitar e eu sem poder sair de casa. Fui tomar banho porque esta transpirando e o pijama molhado. Li. Exercício pulmonar. Almocei. Assisti a Netflix. Li. Exercício pulmonar. Com um prego fiz o segundo risco na parede do escritório. Olhei cuidadosamente todos os móveis da sala, o telão de cinema, os quadros pendurados nas paredes, tapetes e agradeci à Deus o muito que tenho e que as vezes sem merecer. Olhei as fotografias de minha família, dos meus netos, filhos e nora, lembrei dos nossos encontros e me deu um nó na garganta. Escrevi minha crônica. A noite assisti TV.
Terceiro dia: só duas novidades a registrar. Uma que risquei pela terceira vez a parede; e a outra que, no cair da noite, na rua Padre Agostinho houve uma blitz do DETRAN com apreensão de inúmeros carros e motos. Assisti de camarote na varanda do meu apartamento. Nada mais. E assim estou escrevendo o meu diário enquanto o vírus continua lá fora, como um “bicho papão”, assustando meio mundo.
E eu na rotina empolgante do universo do meu lar, só não vou contar, contando, que as vezes dou umas cavalgadas pelas dependências do apartamento montado no cavalinho de cabo de vassoura, do meu netinho, para respirar o ar puro da pradaria . Só nestes poucos dias de sacerdócio aprendi a melhor lição por ter tempo suficiente para tudo: que Deus não pode faltar na casa de ninguém e que ser criativo ajuda muito o tempo passar sem amarguras...
“Fui Promotor de Justiça Criminal e denunciou muita gente por crimes praticados que foram para os presídios. E como Secretário de Estado da Justiça tive a responsabilidade de todo sistema penitenciário. Hoje sou eu que estou confinado.
Registrei nesta crônica a minha experiência. Nunca se pode dizer que desta água não beberei!”
Edson Vidal Pinto
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