Sarna Para Se Coçar.
Parece que estou num período sabático em que me alheei das crônicas do cotidiano (principalmente dos azedos temas políticos) para escrever episódios que tenho gravado em minha memória -, cenas também do cotidiano mas de acontecimentos longínquos.
Minha geração orbita ao redor da idade de 80 anos quase saindo de cena e mantida graças a evolução da Medicina, tornando a longevidade com qualidade de vida um privilégio para muitos e coisa impensável no tempo de nossos pais e avós. E quanto mais se vive mais se aprende e participa de momentos que não são esquecidos, daí a recaída de quando em quando por lembrar cenas do passado. São lembranças e nada mais, pois quem vive só do passado pode esquecer de olhar para a frente.
E narrar certos fatos pitorescos para quem não testemunhou é uma maneira de ser lembrado quando o espaço ocupado ficar vazio. E aqui registro uma cena que deu pano para muita manga. Foi no terceiro ano da Faculdade de Direito da PUC (1.965) quando a única faculdade e uma única construção tinha sido edificada no novo campus universitário da Católica, no antigo hipódromo de Curitiba, no bairro do Prado Velho.
No mais era uma vasta área isolada com muito mato, campo e com um caminho porcamente asfaltado que ligava a via urbana até o prédio da faculdade de Direito. E como a maioria dos alunos usufruía do ônibus da Marechal Floriano como único meio de transporte para se deslocar ao centro da cidade ( e vice-versa), a caminhada entre a faculdade e o ponto de ônibus era distante e penosa principalmente no frio, com geada, ou nos dias de chuva. E do corpo discente poucos eram os privilegiados que tinham carro próprio.
Meu colega e amigo/irmão (até hoje) de nome Wilson Wahrhaftig, mais conhecido como Bob nos meios futebolísticos por ter sido ex-jogador do time do Ferroviário (hoje Paraná Clube), era um que tinha automóvel novinho em folha, da marca DKV, sedan, de cor preta, que ele cuidava como pão de ló. Estava sempre brilhando e impecável sem um mínimo risco na lataria e o interior do carro tinha o cheiro de fábrica. Ele tinha ciúme doentio e eu era o único carona; e todas as vezes que entrava não faltava recomendações e a principal delas era limpar a sola do sapato para não sujar o tapete do carro.
E o prédio onde estudávamos tinha apenas cinco salas, cada sala no modelo anfiteatro comportava 50 alunos, sendo uma para cada cada ano da faculdade. E como o número de alunos era pequeno os professores conheciam quase todos pelo nome, sendo que muitos deles também mencionavam no curso de Direito da federal. E um deles em particular - o Prof. Lamartine Correa de Oliveira Lyra - que lecionava Direito Civil, além de ser um excelente professor era uma fera para dar notas e só passava de ano quem soubesse muito bem a sua matéria.
E ele era um que “seguia” a nossa turma desde o 2o. até o 5o. ano, lecionando assim até a graduação. Eram poucos os que passavam de ano sem segunda época ou dependência. Numa manhã de inverno chuvoso quando ao meio dia terminou a última aula o Bob pegou sua “carruagem real” comigo de carona, e quando estava percorrendo a via asfaltada do campus viu o Prof. Lamartine sob um guarda-chuva caminhando em direção ao ponto de ônibus. Sem pestanejar parou o carro ao lado do mestre, mandou eu sentar no banco de trás e ofereceu carona (com segundas intenções é claro) ao ilustre pedestre. E ele aceitou.
Nossas notas eram sofríveis e a carona veio bem a calhar, foi o que nós dois pensamos intimamente. Uma maneira de socializar um pouco mais com o mestre. Mas foi a pior coisa que aconteceu porque desta “carona” em diante nossas notas só pioraram. E teve um bom motivo. No trajeto para o centro o Bob notou (eu vi pelo espelho retrovisor) que a sola dos sapatos do Prof. Lamartine estava que era um barro só , além de um deles estar desamarrado. Mas a conversa fluía muito bem e meu amigo engoliu seco e manteve a aparência de cordialidade.
Lá pelas tantas, contudo, o professor deparou com o sapato desamarrado e sem nenhuma cerimônia levantou a perna e colocou seu “pisante” para amarrar, no painel do automóvel. E a bomba explodiu. O Bob freou o carro e mandou o Lamartine descer na chuva para, em seguida, sentar o pé no acelerador. O mestre ficou para trás sem saber bem ao certo o que tinha acontecido. Enquanto isto o meu amigo esbravejava de raiva porque o painel de seu carro tinha sido pisoteado. Claro que nós dois passamos a ser vigiados de perto pelo mestre e alvo das piores notas de Direito Civil.
Tivemos que estudar muito para vencer cada ano do curso e nas provas orais tínhamos os maiores pesadelos. No final o saudoso professor foi homenageado emprestando o seu nome para a turma de formandos de 1.967. Embora passados mais de 50 anos de conclusão do curso este episódio é sempre lembrado pelos colegas, porque quem soube do ocorrido nunca mais esqueceu …
“O saudoso Prof. Lamartine foi uma lenda viva como excepcional professor universitário, um vocacionado e muito exigente para dar notas. Quem foi seu aluno conhece muito bem Direito Civil. Tempo em que os mestres lecionavam e não induziam seus alunos a professarem ideologia.”
Édson Vidal Pinto