Um Bom Homem
Juro que não sei ao certo como o “Abelha” nos anos sessenta do Século passado apareceu no Movimento Escoteiro, só sei que ele foi do Grupo “São Luiz de Gonzaga” cuja sede era na Catedral Metropolitana, chefiado pelo Padre Alfeu Luiz. A primeira vez que eu o vi foi num Acampamento Regional do Paraná, uma atividade que por uma semana inteira reunia escoteiros de todo o Paraná, bem como de alguns estados vizinhos, formando uma cidade de lonas na Chácara do Nono, localizada no Km 8 da Estrada de Santa Felicidade. Lembro que o local era próximo da Igreja daquele tradicional bairro turístico, pois pela manhã, nós saíamos marchando do acampamento, para assistir a missa dominical que era uma das obrigações de todo bom escoteiro. Eu na minha adolescência integrei o Grupo Escoteiro Jorge Frassati, da Igreja do Senhor Bom Jesus, o nome foi dado em homenagem a um escoteiro italiano, vítima de um acidente ferroviário naquele país, que acabou com uma das suas pernas esmagadas nas ferragens e quando chegaram os socorristas para levá-lo ao hospital, ele viu que ao seu lado tinha uma mulher, também ferida gravemente, daí ele abriu mãos do atendimento dando preferência a ela, dizendo: “O escoteiro caminha com suas próprias pernas!” Em razão deste seu gesto quando os atendentes retornaram para levá-lo, ele estava morto. Foi deste acampamento Regional em diante que de quando em quando eu encontrava o “Abelha”, nos diversos encontros de escoteiros, ele era esquisito, baixinho, entroncado, tipo monobloco, com um força descomunal, um sujeito bem simplório, de poucas letras, era mais velho, porém um “cara” muito bom. Quando comecei a querer procurar meu caminho na vida, nas vésperas do vestibular, então com dezessete anos de idade, deixei o escotismo para trás. Mas jamais esqueci dos amigos que fiz ao redor do “fogo do Conselho” e nem dos ensinamentos que aprendi nos acampamentos, viagens e escaladas, bem como da doutrina do Lorde Baden Powell (O general inglês que fundou o Movimento Escoteiro) e que contribuíram para forjar minha têmpera de homem, cidadão e chefe de família. Foi por isto - pela amizade - que na década de 1.990, vários escotistas da “velha cepa”, acabaram se encontrando e logo passaram a se reunir (agora também com as esposas e filhos) em reuniões memoráveis, para cantar canções escoteiras, recordar dos velhos acampamentos, das trilhas, da garoa fina e fria da Curitiba de outrora, e principalmente para comer e jogar conversa fora. Em um destes encontros apareceu o “Abelha”, no mesmo porte físico, mas, claro, mais velho, e contou que uma semana sim e outra não ele continuava escalando o pico do Marumbi, a nossa montanha mais alta (mais ou menos 1.800 metros acima do nível do mar), localizada na Serra do Mar. E para chegar na base da montanha é só através de trem ou automotriz, numa viagem de cenário inesquecível, atravessando túneis, pontes e uma vegetação exuberante. Foi então que conhecemos ele melhor, nos contou que era motorista de caminhão de lixo, de uma empresa terceirizada da Prefeitura Municipal, fazia voluntariado na ala infantil do Hospital de Câncer “Erasto Gaertner”, para divertir as crianças com bonecos que ele inventava. Também ia muito na Ilha do Mel para levar alimentos que recebia em doação para entregá-los as famílias carentes, que moravam naquele lugar. É claro que o “Abelha” era um irmão entre todos nós. Um dia ele veio com uma conversa meio diferente, dizendo que iria comprar uma “Asa Delta”, pois o seu sonho era subir o Pico do Marumby para da parte mais alta, chamada de “Olimpo”, saltar com a mesma em direção à cidade de Morretes e descer na pracinha da estação. É claro que em princípio ninguém deu muita “bola” nesta sua conversa, mas todos lhe disseram que não fizesse isto porque seria uma loucura. Pois ele não tinha a mínima noção do que estava querendo fazer. Passados mais uma ou duas reuniões do grupo, o “Abelha” disse que um amigo lhe emprestou uma Asa Delta. Claro que todos tentaram demovê-lo do plano maluco. Ele só dava risada. Menos de um mês, o jornal “Tribuna do Paraná” noticiou que “um homem foi resgatado na Serra do Mar com vida, mas com diversas fraturas no corpo, pelo Corpo de Bombeiros depois de ter saltado de Asa Delta do Pico do Marumby e ter caído poucos metros do local do salto.” Pimba, o acidentado era o “Abelha”. Fizemos uma corrente de amizade e estivemos sempre de vigília no Hospital Evangélico, até o dia de sua alta médica. Depois ninguém mais soube do intrépido “Abelha”. Decorridos um ou dois anos do acidente, alguém do grupo ficou sabendo que ele tinha morrido na Ilha do Mel, onde foi morar numa colônia de pescadores, e que a comunidade erigiu um pequeno monumento de cimento com o seu nome e encima uma abelha muito mal esculpida. Esta foi a vida de um homem simples, porém muito bom, de ótima índole, solidário, aventureiro como todo escoteiro. Ah, seu nome ? Lauro Quirino, amigo dos amigos e das montanhas, também…
“Tem pessoas simples que servem de exemplos para aqueles que tem tudo, mas não sabem viver. São indivíduos que sem muitas letras ensinam, sonham e fazem de seu pequeno mundo um enorme canteiro de amizades. E quem não conhece alguém assim, não é mesmo? Eles estão por toda parte.”