Um Padre Agradecido
Quem não viveu há cinquenta anos ou mais não tem a mínima noção do que era viajar pelas estradas de terra, lama e pó pelo interior do Paraná. Eu vivenciei esta experiência quando em 1.968 ingressei na Carreira do Ministério Público, cujo Procurador-Geral na época era o saudoso Prof. Ary Florêncio Guimarães, um homem disciplinador e rigoroso no cumprimento das tarefas que o Estado delegava aos Promotores e Procuradores de Justiça.
Tempos difíceis em que a Instituição Ministerial sobrevivia com minguados recursos do Orçamento Público, os materiais de expediente eram escassos e cada Promotor zelava pela máquina de escrever, da marca “Torpedo”, tombada no livro de patrimônio da Promotoria. Com exagerado zelo o então Procurador-geral recomendava que fosse usado como “borrão” folhas parcialmente datilografadas ou no verso de cada uma delas, inclusive nos papéis de embrulho em que o material administrativo era empacotado e remetido pelo Correio.
O salário mal dava para passar o mês e o Juiz e o Promotor recebiam em espécie diretamente na Coletoria de Rendas da localidade, pois a rede bancária era insipiente e agências só existiam nas sedes das grandes cidades (que eram poucas). O bacharel em Direito que optava por ditas carreiras sabia que teria de economizar a vida inteira para conseguir viver com mínimo conforto e dignidade. As referidas profissões eram verdadeiros sacerdócios.
E por lembrar daqueles tempos me veio na memória um episódio que narrei no meu livro “Flagrantes do Mundo Jurídico” que está disponível na Editora Juruá, que vou reproduzir em outras palavras e com menor riqueza de detalhes, para uma leitura alegre na semana que inicia. Como Promotor Substituto fui designado para a Comarca de Ipiranga, um pequeno lugarejo localizado na região próxima de Ponta Grossa, onde eu tinha que fazer baldeação para outro ônibus a fim de chegar em Ipiranga. O asfalto existia apenas no trajeto Curitiba à Ponta Grossa.
Já a linha Ponta Grossa/Ipiranga podia ser feita por ônibus de carreira que ia até a região do Alto Ivaí, porém quando chovia o ônibus era substituído por camionetas, com correntes nas quatro rodas, que transportava até oito passageiros além do motorista. E de Ponta Grossa para Curitiba e vice-versa os ônibus eram mais confortáveis da Empresa “Princesa dos Campos”. Fiz muitas viagens de ônibus e camionetas quando nos finais de semana vinha para a Capital para passar com minha noiva.
E numa destas viagens lembro que era sexta-feira, por voltas das 17:00, estava frio e chovendo a cântaros e a camioneta vindo do Ivaí estava quase lotada e seu ponto de parada em Ipiranga era na “Pensão Santa Ana” onde eu “morava”. Naquela noite eu iria com minha noiva e futura sogra na festa de aniversário de uma sua tia, sabendo que teria pouco tempo para mudar de roupa quando chegasse em Curitiba.
Então resolvi vestir o melhor traje esporte que eu tinha levado à Ipiranga e para não sujar vesti sobre ele a minha beca de Promotor. E assim entrei na camioneta. Todos os passageiros me olharam com muita reverência. Sentei-me no banco dos fundos e logo em seguida a cidade de Ipiranga ficou para trás. Vidros embaçados, chuva sem parar, solavancos e derrapagens faziam parte do pacote da viagem.
Lá pelas tantas uma senhora, polaca, abriu o farnel que levara no colo e o cheiro de frango com farofa exalou dentro do veículo. Em seguida uma outra mulher, mais moça, também abriu um pacote que tinha pão feito em casa, e com certeza não teve quem não estivesse cobiçando aqueles preciosos quitutes. E eu estava na fila, mas não tinha certeza nenhuma se seria aquinhoado. Mas o pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é nada. De repente a senhora com a vasilha de frango na mão, virou para trás, olhou respeitosamente nos meus olhos e falou:
- Padre, eu gostaria muito que o senhor aceitasse um pedaço de frango e um pedaço de pão, o Senhor aceita?
Meu coração quase parou. A beca que cobria minha roupa com certeza fez as pessoas me confundirem com um clérigo. Mas naquela hora não fiz questão nenhuma de esclarecer a verdade:
- Irmã, muita generosidade sua, vou aceitar. Muito obrigado e Deus abençoe a senhora e todos os queridos irmãos desta viagem!
Nunca mais comi pedaço tão delicioso de frango com farofa e pão feito em casa, como naquela viagem. E o aniversário foi inesquecível, porque minha noiva estava do meu lado ...
“Nas pessoas simples brotam sempre os melhores gestos de solidariedade humana. Numa viagem difícil aprendi esta lição que serviu para tratar todas as pessoas com igual respeito e atenção. E naquela camioneta lembro que ninguém ficou sem comer frango com farofa e um pedaço de pão!”
Edson Vidal Pinto
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