Um Senhor Juiz
Como em toda profissão tem aqueles que são vocacionados e fazem dela um verdadeiro apostolado, primando pela competência, estudo permanente, ética, urbanidade e bom senso. Mesmo quem não tem curso superior e abraça por amor o ofício em que busca se aprimorar e trabalhar de maneira diferenciada, consegue sempre os devidos elogios e méritos.
Um dedicado lustrador de sapatos que tem nos lábios o sorriso daquele que gosta do que faz, tem muito mais mérito do que o empregado de uma empresa que toda hora olha no relógio na espera sofrida de poder ir embora. Aquele que gosta da profissão (seja ela qual for) que tem, pode na hora de se aposentar dizer que nunca trabalhou; no entanto, o insatisfeito pelo trabalho que executa é um sofredor e conta os minutos para se aposentar, para tirar o peso do mundo das custas. Este é o verdadeiro Atlas. E como é fácil distinguir o bom profissional daquele outro que só quer ver o tempo passar para ir embora, pois este está sempre mau humorado, impaciente e pronto para despejar impropérios. Sou de uma geração de Operadores do Direito que a grande maioria de Juízes, Promotores de Justiça e Advogados abraçavam suas respectivas profissões com o espírito altruísta de servir, aceitar as regras do jogo, cumprir as leis e zelar pela recolha feita, mesmo sabendo que is tempos era difíceis e o dinheiro curto. Na advocacia existia um leque de opções e os mais qualificados sabiam que o prestígio lhes garantiria honorários condignos. Já na Magistratura e no Ministério Público as carreiras exigiam como condição principal residir nas Comarcas do interior do estado, para só eventualmente voltar à Capital e com a mínima chance ser promovido ou nomeado para o Tribunal de Justiça. Eram anos e anos de muitas mudanças pelas Comarcas, com sacrifício para as famílias, residências simples, fóruns precários e salários pouco atrativos. Era mais uma aventura por ter mil e um obstáculos. Mesmo assim, o Juiz era a maior autoridade e gozava do respeito de seus jurisdicionados, pois era comedido nas suas ações, falava pouco e ninguém ousava enfrentar a sua autoridade. O Promotor de Justiça pela sua atuação de acusador no Tribunal do Júri era respeitado e temido, sua palavra tinha credibilidade. Bem diferente de hoje em dia, não é mesmo, porque os inquilinos do STF conseguiram através de seus ativismos políticos, deslustrar o prestígio do Poder Judiciário brasileiro; e a nova geração de Promotores e Procuradores de Justiça inclinaram-se para abraçar a ideologia castradora. E onde entra o viés ideológico e político partidário nas Instituições, sai pela janela das mesmas, a moralidade, independência e o lustro das togas e becas. Bem diferente, mas muito, muito diferente de ontem, quando o princípio de autoridade prevalecia e ninguém tinha ousadia de querer confronta-lo. Foi justamente nesta época, nos anos de 1.968, quando eu dava meus primeiros passos como Promotor de Justiça Substituto, que cheguei na cidade da Lapa e conheci um “senhor” Juiz de Direito, titular da Comarca, de nome Luiz Carlos Reis -, um homem com postura de fidalgo, educado, que nos seus gestos simples imprimia a marca de imparcialidade e era respeitado por onde andava.
A cidade por ser tradicional, constituída de casarios coloniais, não dispunha de casa para alugar, por isto o dr.Luiz Carlos residia com a família um pouco distante, na área do Hospital São Sebastião, do governo estadual, em uma das seus casas construídas para moradia de alguns funcionários. Assim, todos is dias, o Juiz percorria uns oito quilômetros até a entrada da a cidade, onde tem um painel do inesquecível Poty (homenagem aos tropeiros). E o Promotor era um “senhor” agente Ministerial, o dr. Luciano Branco de Lacerda, um jurista de nomeada. Foi com estes dois profissionais que eu procurei moldar meu caráter e forjar meu aprendizado para poder chegar onde cheguei. Lembro de um episódio em que foi protagonista o dr. Luiz Carlos, em plena época do Governo Militar. Na Lapa existe um quartel do Exército, comandado por Tenente-coronel. Um soldado do batalhão testemunhou um homicídio acontecido na cidade. Na instrução do processo o Juiz , nos termos do Código de Processo Penal, requisitou através de ofício ao Comandante Militar que este determinasse que seu subordinado comparecesse para ser inquirido em audiência, designada para determinado dia e horário. Dias antes da realização da audiência o dr. Luiz Carlos recebeu ofício do Comandante se recusando a cumprir a requisição feita, porque o artigo citado não tinha nada a ver com a tal “requisição”. Sem nenhum alarde o dr. Luiz Carlos telefonou ao Tenente-Coronel convidando-o para tomarem um cafezinho no fórum, a fim de dissipar qualquer mal entendido. Cioso de duas obrigações e deveres o militar aceitou o convite. No encontro de ambos o Juiz polidamente entrou no assunto que gerou a recusa do Comandante e este se sentiu por cima, afirmando eur estranhará que o Juiz citasse um artigo da lei que tratava de situação diferente. Foi quando o dr. Luiz Carlos perguntou:
-Comandante, eu gostaria muito de ver o seu Código?
-Claro, MM. - chamou o ajudante de ordens que estava no corredor e pediu que este mostrasse o Código.
O Juiz pegou o código e disse:
-Coronel, o senhor não olhou o Código de Processo certo; o senhor olhou o Código de Processo Penal Militar, porém, a requisição de seu soldado para comparecer na audiência designada, está prevista no Código de Processo Penal, somente!
O militar viu o erro que cometeu e em poucos minutos saiu do gabinete. Estava arrasado. E o mal entendido foi devidamente resolvido. Tudo numa boa. Era assim o dr. Luiz Carlos, um Juiz sem alardes, que buscava sempre apaziguar os ânimos e a harmonia entre os jurisdicionados. Lembrei do amigo, e nesta singela crônica presto-lhe minhas homenagens, também como colegas, pois ambos somos desembargadores aposentados…
“Os Magistrados vocacionados tem sempre uma fórmula mágica para supera os pequenos desentendimentos, buscar aparar as arestas, sem melindres e sem deixar sequelas. Pois a missão do Julgador é buscar sempre a harmonia social. E os Juízes de ontem faziam isto com maestria. Hoje, tem Juiz que não atende advogado, muito menos parte do processo, sem justificativa razoável.”