Verdade
Na vida profissional a experiência se adquire com o tempo. A conclusão de curso superior dá apenas conhecimentos teóricos, no dia a dia é que cada um aprende a sobreviver e a arte do ofício. Tem os que são estudiosos e os autodidatas. Mas é no laboratório dos acontecimentos que o profissional se revela apto ou não para os grandes desafios. Regra que não admite exceção em qualquer atividade humana.
Quando exerci a Promotoria de Justiça da comarca de Faxinal, eu estava suficientemente calejado e imaginava que tinha bagagem para não me surpreender com mais nada. Ledo engano. Na jurisdição da comarca o crime de homicídio era constante e preocupava a população ordeira. O juiz de Direito Dr. Mário Ráu, de saudosa memória, diligente e operoso, marcava por mês cinco ou seis sessões de julgamentos do Tribunal do Júri. Tudo para acelerar a Justiça e obstar a onda de criminalidade. Como as sessões eram mensais, eu me familiarizei rapidamente com os jurados e estes prestavam muita atenção naquilo que eu dizia, a ponto de gozar credibilidade. Os advogados não gostavam muito porque as suas atuações eram esporádicas e a minha permanente.
Cidade pequena, as pessoas se conheciam o suficiente. Tecnicamente tem processos que são levados a julgamento pelo júri porque existindo dúvidas sobre a existência de excludente de criminalidade, cabe ao juiz pronunciar o réu por força do brocardo jurídico "in dúbio pró societatis" (Em dúvida para a sociedade). Posteriormente, no julgamento popular, a dubiedade da prova coletada nos autos leva quase sempre à absolvição do acusado.
Certa feita, atuei num júri que a prova do processo era precária, apesar do meu esforço de extrair a exata noção do fato e a consequente responsabilização do acusado. Na data do julgamento, depois de ler e reler os autos, conclui que a precariedade da prova não me permitiria fazer uma acusação sustentável, salvo se usasse de sofismas. Prática impensável para qualquer promotor de Justiça! Aberta a sessão do júri, quando me foi concedida a palavra, olhei nos olhos de cada um dos jurados e, em seguida, detalhei criteriosamente a prova, realcei a sua fragilidade e, tecnicamente, demonstrei que ela não permitiria de sã consciência que se fizesse qualquer outro juízo senão o de pedir a absolvição do acusado! Vi quando os jurados arregalaram os olhos e se entreolharam. Senti um frio na espinha. Pensei: será que cometi algum desatino? Embora estivesse com a consciência tranquila e com o dever cumprido. E não me enganei, na hora dos jurados votarem eles acabaram condenando o réu por cinco votos a dois. Terminada a sessão eu fiquei buscando uma resposta lógica. Eu não estava acreditando com o que tinha acontecido. Será que os jurados perderam a confiança que sempre depositaram no seu promotor? Caí na realidade quando na saída do fórum um dos jurados bateu levemente nas minhas costas, e falou:
- Doutor, não fique surpreso com o veredito do júri, pois a verdade do que aconteceu não está nos autos!
Daí em diante, aprendi que em cidade pequena as pessoas tudo sabem e ouvem, e que o promotor deve sempre participar da sociedade a qual serve para poder avaliar os acontecimentos. E por força do ofício, recorri do júri em que pedi a absolvição do acusado! No final, o Tribunal deu provimento ao recurso da defesa, porque a prova dos autos não era suficiente para alicerçar a condenação. Aplicou-se o princípio do “in dúbio pro réu” (em dúvida para o réu). Só então, respirei aliviado!