Modernidade
Ontem, 16 de julho de 2.017, domingo.
Não é dia de aborrecimento e, portanto não vou escrever esta crônica focada na interminável crise que assola o país. Vou entrar no redemoinho do tempo e deixar que minha memória vá ao encontro das recordações guardadas nas esquinas do passado. Antes um pequeno introito: acabei de assistir na TV a cabo, uma reportagem mostrando a qualidade de uma prisão na Noruega. Limpeza total, conforto e poucos presos, estes com total liberdade de ir e vir. Coisa de primeiro mundo! Dito isto, mergulho na espiral do tempo.
Não lembro bem se foi no segundo semestre de 1.968 ou no primeiro semestre de 1.969, que na condição de Promotor Substituto da Lapa fui designado para atender a Promotoria da comarca de Ipiranga, cidade localizada nas proximidades da região de Ponta Grossa, sul do estado. Cidade pequena, sem infraestrutura, ruas de macadame, poucas casas distribuídas em quadras muito longas, povo trabalhador e que vivia da atividade rural.
O fórum local era de material, construção geminada com a residência do Juiz, este era o Dr. Ruy Fernando de Oliveira, competente e respeitado profissional. Solteiro, fui me hospedar na "Pensão Santa Ana" a única da localidade, construção de madeira, que acolhia caixeiros viajantes e eventuais passantes, onde também servia de parada do ônibus que percorria a região.
Nesta hospedaria fiquei algum tempo até que numa noite, quando eu estava no meu quarto, ocorreu um tiroteio entre dois hóspedes que jogavam sinuca no salão de entrada, cujos tiros atravessaram algumas paredes do imóvel. Um dos protagonistas morreu e o outro foi levado ferido para o hospital de Ponta Grossa. Este fato e por sugestão do Juiz passei a residir no gabinete da Promotoria, dentro do fórum. Sempre cioso de minhas responsabilidades resolvi fazer uma inspeção na cadeia da cidade.
Naquela época era obrigação do agente do Ministério Público, pelo menos uma vez por mês, visitar a cadeia onde o delegado mantinha um livro em que o Promotor registrava sua passagem e impressões sobre a higiene do local, a qualidade da comida, as reclamações, o número, o nome de cada preso e o motivo que legalizava a respectiva prisão.
A inspeção era feita sem aviso prévio. E lá fui eu em direção à delegacia, a pé, de terno e gravata, driblando o pó quando os caminhões carregados de madeira deixavam seu rastro. O imóvel da cadeia era do tipo padrão, pequeno, de material, piso de cimento, com salas para o delegado, escrivão, dormitório para policiais e a carceragem com duas celas, cada uma delas com uma pequena janela, com grades.
Uma pessoa bem apresentável estava sentada em uma cadeira, na porta da repartição, tomando chimarrão. Quando ele me viu levantou-se, respeitosamente. Expliquei o motivo da minha visita e ele prontamente franqueou total acesso no imóvel, ficando ao meu lado e respondendo todas as minhas perguntas.
Observei que o chão de cimento brilhava, logo deduzi que todos os dias passavam cera e enceravam todo o piso, inclusive no local da carceragem. O cheiro do ambiente era agradável e a higiene era impecável. Nos cubículos não tinha nenhum preso. Fiquei muito satisfeito com tudo que vi.
No final pedi ao cidadão, que pensei que fosse o delegado, o livro de inspeção.
- Eu não sou o delegado, Promotor!
- Ah! Pensei. Quem é o senhor?
- Eu sou um preso...
Engoli seco, sem entender muito bem. Dai arrisquei:
- E o delegado?
- Ele é um sargento da Polícia Militar.
- Está na cidade?
- Ele está na beira do Rio Ivaí pescando com um soldado e um outro preso, o jantar da noite ...
Achei tudo muito estranho e diferente. Deixei registrado no livro as boas impressões de minha inspeção e omiti sobre a conduta do sargento e sua frouxidão quanto ao trato com os presos. E não me arrependi!
Pois ao assistir a reportagem do presídio da Noruega tenho absoluta consciência que tudo foi copiado da cadeia pública de Ipiranga. Foi de lá que o primeiro mundo importou para humanizar o sistema prisional. Juro que é verdade e dou fé!
"Pelos caminhos que a vida proporciona é que o indivíduo armazena conhecimentos e protagoniza cenas que guarda na memória. É prazeroso recordar do passado para situar os mais jovens num mundo que deixou de existir!”
Edson Vidal Pinto